quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Ruy Belo - COMO QUEM ESCREVE COM SENTIMENTOS


COMO QUEM ESCREVE COM SENTIMENTOS

Estou sujeito ao tempo sou este momento
perguntam-me quem fui e permaneço mudo
o tempo poisa-me nos ombros em relento
partiu no vento essa mulher e perdi tudo
Já não virá ninguém por muito que vier
em vão esperei a rosa da minha roseira
quando um pássaro sai dos olhos da mulher
é porque ela é de longe e não da nossa beira

Resta-me um sonho desconexo e desconforme
Na haste da camélia que o vento quebrou
jamais a vida branca como ela dorme
Eu era essa camélia e nunca mais o sou

A minha vida é hoje um sítio de silêncio
a própria dor se estreme é dor emudecida
que não me traga cá notícias nenhum núncio
porque o silêncio é o sinónimo da vida

O mundo para além dessa mulher sobrava
tudo vida vulgar tumultuária e cega
o brilho do olhar equilibrava a chuva
nas suas costas hoje toda a luz se apaga

Mulher que um golpe de ar me pôde arrebatar
enfim não existia ou só ela existia
Asas que ela tivesse deixou-as queimar
e tê-la-á levado estranha ventania

Daqueles traços fisionómicos de pedra
não quero já ouvir a voz que às vezes vem
na calma destacada por um cão que ladra
Não há ninguém perto de mim sinto-me bem

Cada casa que roço é escura como um poço
se sou alguma coisa sou-o sem saber
sossego solitário sem mistério isso
talvez tivesse sido o que sempre quis ser

As flores vinham nela e era primavera
mas tanto a nomeei e tanto repeti
erros numa estratégia imprópria para ela
tamanho amor expus que cedo a consumi

A noite quando ao fim descer decerto há-de
ser certa solução. Foi há muito a infância
Ao tempo o que tu tens tu bem o sabes cede
estendo as mãos talvez te fique a inocência
A vida é uma coisa a que me habituei
adeus susto e absurdo e sobressalto e espanto
A infância é uma insignificância eu sei
e apenas por a ter perdido a amamos tanto

Estou sozinho e então converso com a noite
das palavras que nos subjugam nos submetem
As coisas passam e em vez delas é aceite
o nosso sistema de signos onde as metem

Esta minha existência assim crepuscular
devida àquela que é rastos destroços restos
acusa hoje alguma intriga consular
de quem não tem cabeça a comandar os gestos

Foi uma rosa rubra a autora desta obra
aberta e arrogante grácil flor do instante
que triunfante não há coisa que não abra
para ferir quem a viu e morrer de repente

E noite sou e sonho e dor e desespero
mero ser sórdido e ardido e encardido
mas já não tarda a abrir-se na manhã que espero
um arco com vitrais aos vendavais vedado

E embora a minha fome tenha o nome dela
e da água bebida na face passada
não peço nada à vida que a vida era ela
e que sei eu da vida sei menos que nada

(Ruy Belo, Toda a Terra, 1976)


[o poeta que marcou a segunda metade do século XX…]

Ruy de Moura Belo (1933-1978) nasceu em São João da Ribeira, Rio Maior, e faleceu em Lisboa. Doutorou-se em Direito Canónico na Universidade Gregoriana, em Roma, e licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa. Obras poéticas: Aquele Grande Rio Eufrates (1961), O Problema da Habitação (1962), Boca Bilingue (1966), Homem de Palavra(s) (1969), Transporte no Tempo (1973), País Possível (1973), A Margem da Alegria (1974), Toda a Terra (1976), Despeço-me da Terra da Alegria (1978). A sua poesia encontra-se recolhida em Obra Poética de Ruy Belo (volumes 1 e 2, 2ª edição, 1990). Ensaio: Na Senda da Poesia (1969).

1 comentário:

João Roque disse...

Um bom e esquecido poeta, com fortes ligações a Timor, se não estou em erro.