Os romances «O Remorso de
Baltazar Serapião» e «A Máquina de Fazer Espanhóis», do escritor Valter Hugo
Mãe, entraram para a lista dos melhores livros do ano pelo jornal brasileiro O Globo. No suplemento de cultura, o
jornal recorda que Valter Hugo Mãe desembarcou no Brasil em julho passado como
um autor desconhecido e voltou como um escritor consagrado entre os leitores
brasileiros. A conquista deu-se durante a
Feira Literária de Paraty, onde o escritor português seduziu o público com um
discurso emocionado sobre sua relação com o Brasil.
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(in Globo)
Aqui
fica o texto que valter hugo mãe pediu para ler no final da sua mesa na Festa
Literária Internacional de Paraty e que levou o público na Tenda dos Autores às
lágrimas.
“Quando eu tinha uns 8 anos,
veio morar para a casa ao lado da dos meus pais um casal de brasileiros com
duas filhas moças. Ao chegar, o casal ofereceu uma ambulância ao quartel de
bombeiros da nossa vila e toda a vila se emocionou. Foram os primeiros
brasileiros que eu vi fora da tv, fora das novelas. Eu e os meus amigos fomos
ao quartel dos bombeiros apreciar a ambulância nova, bem pintada, que se
mostrava a todos como prova bonita da bondade de alguém. O meu pai tinha um
carro pequeno, velho, difícil de levar a família inteira dentro. A ambulância
era enorme, um luxo, como se fosse para transportar doentes felizes. Eu e os
meus amigos ficamos estupefactamente felizes.
Depois, algumas mulheres e
alguns homens mais delicados reuniam-se diante da senhora e das moças
brasileiras e faziam perguntas sobre as novelas. Naquele tempo, passavam com
muito atraso em relação ao Brasil, e todos queriam avidamente saber quem casava
com quem na ‘Gabriela’.
A senhora e as suas duas
filhas, porque sabiam o que ia acontecer nas novelas, eram aos olhos de todos
como adivinhas, gente que via coisas do futuro, gente que viveu o futuro e que
se juntou a nós para reviver o passado. Por causa disto, eram mágicas e as
pessoas queriam a opinião delas para cada decisão.
A minha mãe pediu à nova
vizinha a receita para fazer pizza, porque ainda não havia pizzarias e só
víamos nas revistas como deviam ser bonitos e saborosos aqueles círculos de pão
e queijo coloridos pousados nas mesas. Passámos a comer uma pizza de atum com
muitas azeitonas pretas. Ainda hoje peço nos restaurantes pizza de atum com a
esperança de que seja exactamente igual à da minha infância, mas nunca é.
As moças brasileiras eram
mais velhas do que eu e ficaram amigas das minhas irmãs. As minhas irmãs saíam
com elas à rua inchadas de orgulho, porque as pessoas todas, sempre comovidas
com a ambulância, faziam vénia e sorriam. Havia gente que dizia que as moças
brasileiras eram as mais belas de todas. Elas eram, na verdade, sorridentes, e
eu senti que também seriam muito felizes na nossa pequena vila.
Um dia a minha irmã mais
velha fez anos e foi festejá-los com uma festa na garagem das brasileiras. Na
noite desse dia, ali pelas oito horas, uma outra menina, filha de um vizinho
português, mostrou-me tudo. Não foi a primeira vez, mas eu queria sempre ver,
embora ela não quisesse sempre mostrar. Um amigo meu surpreendeu-nos e quis ver
também, mas a menina respondeu que não. Ela disse que mostrava apenas a mim porque eu era amigo das
brasileiras. Entendi que as brasileiras eram como um toque de midas que me
transformava num menino de ouro.
Aos dezoito anos, aquele que
é o meu amigo mais irmão chegou do Brasil e ingressou na minha escola. Eu
instintivamente corri atrás dele. Queria ser amigo dele como se fosse vital
para mim. Ele mostrou-me Titãs e Legião Urbana. Eu achava que o Renato Russo ia
salvar a minha vida com aquela canção do ‘Tempo perdido’. Quando o Renato Russo
morreu, chorei muito e passei só a chorar quando ouço o ‘Tempo perdido’. Eu não
sei se a arte nos deve salvar, mas tenho a certeza de que pode conduzir ao
melhor que há em nós, para que não nos desperdicemos na vida.
O Alexandre, esse meu amigo
brasileiro, mudou tudo em mim para melhor. Adorava viajar de comboio com ele
quando entalávamos as meias mal cheirosas nas janelas para que arejassem
durante a marcha. Nesse tempo, o Alexandre ensinou-me a perder aquela vergonha
que só atrapalha. Porque os portugueses sempre foram meio envergonhados.
Hoje, temos quase quarenta
anos, ele casou com uma portuguesa e tem filhos. Eu, não. Fiquei para tio a
escrever romances e os romances tornaram-se fundamentais na minha vida, como a
máquina de fazer espanhóis. Sonhei sempre vir ao Brasil e vim várias vezes,
faltava vir como escritor, publicado e recebido, pois aqui estou, a FLIP fez
isso, não esquecerei nunca, sinto que fazem de mim um homem de ouro, agradeço a
todos muito por isso."
valter hugo mãe, Paraty 2011
Links:
Valter Hugo Mãe (Website)
Casa de Osso (Blog de Valter Hugo
Mãe)