Habituo-me a só pensar bem
dos meus amigos, a confiar-lhe os meus segredos e o meu dinheiro; não tarda que
me traiam. Se me revolto contra uma perfídia sou eu, sempre, a sofrer o
castigo. Esforço-me por amar os homens em geral; faço-me cego aos seus erros e
deixo, indulgente ao máximo, passar infâmias e calúnias: uma bela manhã acordo
cúmplice. Se me afasto de uma sociedade que considero má, bem depressa sou
atacado pelos demónios da solidão; e procurando amigos melhores, acho os
piores. Mesmo depois de vencer as paixões más e
chegar, pela abstinência, a uma certa tranquilidade de espírito, sinto uma
auto-satisfação que me eleva acima do próximo; e temos à vista o pecado mortal,
a vaidade imediatamente castigada. Como explicar que toda a
aprendizagem de virtude dê origem a um novo vício?
August Strindberg, in 'Inferno'
Inferno começa com o regresso de
Strindberg a Paris, ao seu quarto no Quartier Latin, dias depois de ter
abandonado mulher e filha. É então que começa a odisseia pela busca do sentido
mais profundo das coisas. Experiências químicas, escritos dispersos, feridas na
pele, esquecimento e isolamento do mundo são algumas das provas a que se
submete, talvez com algum objectivo catártico. Inferno não é um livro,
não é vivido pelo leitor como um livro, mas sim como uma experiência. A
afirmação de Pier Paolo Pasolini no posfácio pode dar uma ideia do impacto que
esta obra é capaz de provocar, como se, com ela, tivéssemos acesso ao mais
íntimo de um autor genial, complexo e contraditório. Misto de diário, ensaio e
ficção, o texto é um mergulho nos subterrâneos de seu tumultuado mundo
psíquico, no qual a vontade individual parece estar submetida ao poder de
forças inconscientes, que transformam o homem num joguete atormentado. É também
o testemunho da mania de perseguição de Strindberg, da sua religiosidade
supersticiosa, de sua misoginia e misantropia, uma obra de originalidade quase
sem paralelo na literatura moderna.
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