"[...] O perfume dos
lilases, atingido aquele limiar de dor, que não sabemos mais se é física se é
mental, apunhalava-a na tarde, naquela casa, outra. Não já a de outrora, onde
se mirara no espelho das aparências. Arrogante, segura, vestida apenas da nudez
da sua grácil adolescência, sem precisar de asas-braços para cantar a vida. O
espelho devolvia-lhe, então, o seu corpo-lira, as suas formas de fruto enxuto,
onda e concha, libertas na luz nocturna, que envolvia a sua carne de lua,
amassada com azeitona. Um corpo de hastes e ramagens, fonte e braço de água.
Margem de seda - longilínea e breve - tão apetecida! Como era simples o
alfabeto do corpo e que fácil amá-lo: as formas, a textura, o odor secreto, o
sabor salino e canela, o rumor latejante! Os cabelos, movimento na aragem da
tarde ou algas de suor, nos ombros da noite. Mas como tocar e sentir, sob a
mão, os soluços de sombra e a fragilidade nua e informe do ser? Tão fácil
acalmar as sedes do corpo e tão difíceis as outras! O seu fogo estava para além
do seu ventre, cavado, capaz de floração, as suas nascentes muito para lá das
fissuras, labiais, do corpo. Havia nela sombras mais densas do que as do púbis
ou mesmo que as do sol negro dos seus cabelos. Claridades mais luminosas do que
a água batida pela luz. O rio das suas pernas era um curso limitado, mas a sua
alma tinha caudais de sede, mais ansiedade e inquietação do que as do simples
desejo. Coisas sem nome, que apelavam ao caldeamento e à fusão, mais ao êxtase
do que ao orgasmo. O que era o amanhecer, lunar, das colinas do seio, comparado
às profundidades, nocturnas, do que estava para além dos sentidos: as
dormências do que não sabemos pelo olhar e pela metáfora e são tumultuar
obscuro? E depois, como decidir, era a sede dela que ele bebia, ou a sua própria
sede que acalmava e procurava estancar? O «outro» existe realmente ou somos
ainda nós? [...]"
Luísa Dacosta, Na Água do Tempo: Diário
Se
eu...-
Se
eu tivesse um carro
havia
de conhecer
toda
a terra.
Se
eu tivesse um barco
havia
de conhecer
todo
o mar.
Se
eu tivesse um avião
havia
de conhecer
todo
o céu.
Tens
duas pernas
e
ainda não conheces
a
gente da tua rua.
Luísa Dacosta
Luísa
Dacosta, transmontana de nascimento, formou-se em Histórico-Filosóficas. No
entanto, já na altura se interessava por literatura, tendo assistido a aulas de
Vitorino Nemésio, Lindley Cintra e Crabbé Rocha. Traduziu obras de Nathalie
Sarraute e Simone de Beauvoir, mas as suas maiores referências foram as
mulheres, que emurchecem aos trinta anos, vivem e morrem na resignação de ter
filhos e de os perder, na rotina de um trabalho escravo, sem remuneração,
agredidas como animais de carga.
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