Não sabia que ia doer
tanto mas esta noite concluo a minha biografia. Devia estar feliz: é melhor que
tudo o que fiz até agora. Durante meses gastei nela muitas horas multiplicadas
pela ansiedade, escrevi-a num estado de exasperação dos sentimentos.
Um composto de relâmpagos,
ditado por uma deusa nostálgica, que me guiava enquanto eu molhava o teclado de
lágrimas. Foram meses de união de facto com o lado esquerdo, o da vida, o do
coração, descobrindo uma energia recôndita de que me não julgava capaz, expondo
as minhas nódoas negras e até ao fim de mim própria. Devia estar aliviada: não
estou,
(porque deixarei apenas a
memória de ter sido uma atriz)
mas, espero, alguma
saudade nas poucas pessoas que me conhecem neste país sem memória e fizeram o
favor de gostar de mim. Nada mais. Chegamos tarde a algum conhecimento da vida,
mas o que se fica a saber não nos torna mais lúcidos. Uma autobiografia, que me
devia deixar contente e não deixa. Não farei outra peça porque fui esquecida. E
no entanto
(e é por isso que não
estou feliz)
aborrece-me pensar que
tenho tempo para mais duas ou três peças antes que o pano se feche
definitivamente na minha vida: eis a verdade. E esse facto entristece-me. Acho injusto,
dado que sinto em mim não duas ou três peças mas uma mão cheia delas. Começo a
ter uma ideia do que é representar, começo a entender o que se pode construir
num palco, começo a interiorizar verdadeiramente a alma das diversas
personagens. E agora, que deveria começar, sinto e sei, na carne, o limitado
espaço que me resta. Agora que queria vestir Hedda Gabler, o Waterloo
de muitas atrizes. Meu Deus, eu a querer continuar e o tempo a fugir-me. Não
faço a menor ideia qual seria a peça seguinte, as peças seguintes e, no
entanto, sinto-as vivas, dentro de mim, sinto a necessidade de continuar a
habitar grandes amores, a necessidade gigantesca do absoluto, mas não passo de
uma cadela vadia com pavor de uma solidão que não presta. Resta-me pensar nos
primeiros passos no teatro, o palco à italiana, a boca de cena, o pano de boca,
as regras artísticas, a sucessão de jogos cénicos, o desafiar costumes e
tradições, o dia-a-dia dos sucessos e dos fracassos, os meandros dos bastidores,
as conversas de camarim, o contra-regra que se enfrasca em whisky irlandês, raiva
e ternura, a estagiária do Conservatório que treme sem cessar, as dificuldades
financeiras, as receitas de bilheteira, as tensões secretas, as mortes dos
colegas que tão dolorosamente me demonstraram a efemeridade da vida, das críticas
que me fizeram chorar, a necessidade de chocar, provocar, pôr a pensar, o sonho
de mais uma noite de alegria. Em nenhum outro trabalho se cruzam tanto as humanas
paixões: o que somos, o que amamos, o que pensamos, o que sentimos. O ator
inventa uma outra cara, ou inventa uma outra pessoa para si. Coisas que só a
gente de teatro sabe. Cada espetáculo era a minha história. Ficava emocionada
ao lado dos velhos mestres pela sua capacidade de dádiva, pela sua coragem em
se exporem. Fui intermediária de afetos e mensageira de grandes dramaturgos,
fui também em alguns instantes intérprete de poetas, comovi e comovi-me no
lugar mágico que é o palco com a grande poesia, mesmo na adversidade física, na
fragilidade pessoal. Sonhei com a peça perfeita, imaginava-me uma Antígona ou
numa Medeia, sentir o público no meu corpo, entrar na personagem e não me
reconhecer, captar o teatro com todos os sentidos. E, agora é com algum arrepio
que encarno uma espécie de Maria Antonieta, à espera de misericórdia.
Nesta encenação de agonia
é com algum arrepio que peço só mais um papel, só mais uma temporada. Não tinha
de ser assim.
Durante alguns anos fui mais
afortunada do que é sensato esperar e não concebia que o destino de uma atriz
fosse efémero, mas não são as rugas que a humilham ou a derrotam. Sei que fiz o
melhor que pude, com a consciência que não se faz teatro à velocidade das
novelas sul-americanas. Quando represento quero apenas libertar-me do que sou
e, se quisesse alguma coisa, seria apenas esse tão modesto, tão ambicioso objetivo:
dar corpo a mulheres marginais, a essas princesas da melancolia. Se me perguntarem
- o que é que quis dizer
com esta autobiografia?
a resposta mais sincera é
- o teatro é a minha própria
pele e nós atores somos como vírus, precisamos de outras almas para sobreviver.
E se advertem
- Não há trabalho para
todas as atrizes da sua idade
já nem comento, não
entendem nada de teatro.
Agora apareço fora de
palco sem pintura, de cara lavada, sem a máscara da atriz. O que é que andam a
fazer com os atores e as atrizes que desfalecem à espera de um contrato? Nem um
olhar cúmplice a acompanhar-nos, ninguém…
Luís Galego