sábado, 24 de março de 2012

a tristeza da atriz...






Não sabia que ia doer tanto mas esta noite concluo a minha biografia. Devia estar feliz: é melhor que tudo o que fiz até agora. Durante meses gastei nela muitas horas multiplicadas pela ansiedade, escrevi-a num estado de exasperação dos sentimentos.


Um composto de relâmpagos, ditado por uma deusa nostálgica, que me guiava enquanto eu molhava o teclado de lágrimas. Foram meses de união de facto com o lado esquerdo, o da vida, o do coração, descobrindo uma energia recôndita de que me não julgava capaz, expondo as minhas nódoas negras e até ao fim de mim própria. Devia estar aliviada: não estou,

(porque deixarei apenas a memória de ter sido uma atriz)

mas, espero, alguma saudade nas poucas pessoas que me conhecem neste país sem memória e fizeram o favor de gostar de mim. Nada mais. Chegamos tarde a algum conhecimento da vida, mas o que se fica a saber não nos torna mais lúcidos. Uma autobiografia, que me devia deixar contente e não deixa. Não farei outra peça porque fui esquecida. E no entanto

(e é por isso que não estou feliz)

aborrece-me pensar que tenho tempo para mais duas ou três peças antes que o pano se feche definitivamente na minha vida: eis a verdade. E esse facto entristece-me. Acho injusto, dado que sinto em mim não duas ou três peças mas uma mão cheia delas. Começo a ter uma ideia do que é representar, começo a entender o que se pode construir num palco, começo a interiorizar verdadeiramente a alma das diversas personagens. E agora, que deveria começar, sinto e sei, na carne, o limitado espaço que me resta. Agora que queria vestir Hedda Gabler, o Waterloo de muitas atrizes. Meu Deus, eu a querer continuar e o tempo a fugir-me. Não faço a menor ideia qual seria a peça seguinte, as peças seguintes e, no entanto, sinto-as vivas, dentro de mim, sinto a necessidade de continuar a habitar grandes amores, a necessidade gigantesca do absoluto, mas não passo de uma cadela vadia com pavor de uma solidão que não presta. Resta-me pensar nos primeiros passos no teatro, o palco à italiana, a boca de cena, o pano de boca, as regras artísticas, a sucessão de jogos cénicos, o desafiar costumes e tradições, o dia-a-dia dos sucessos e dos fracassos, os meandros dos bastidores, as conversas de camarim, o contra-regra que se enfrasca em whisky irlandês, raiva e ternura, a estagiária do Conservatório que treme sem cessar, as dificuldades financeiras, as receitas de bilheteira, as tensões secretas, as mortes dos colegas que tão dolorosamente me demonstraram a efemeridade da vida, das críticas que me fizeram chorar, a necessidade de chocar, provocar, pôr a pensar, o sonho de mais uma noite de alegria. Em nenhum outro trabalho se cruzam tanto as humanas paixões: o que somos, o que amamos, o que pensamos, o que sentimos. O ator inventa uma outra cara, ou inventa uma outra pessoa para si. Coisas que só a gente de teatro sabe. Cada espetáculo era a minha história. Ficava emocionada ao lado dos velhos mestres pela sua capacidade de dádiva, pela sua coragem em se exporem. Fui intermediária de afetos e mensageira de grandes dramaturgos, fui também em alguns instantes intérprete de poetas, comovi e comovi-me no lugar mágico que é o palco com a grande poesia, mesmo na adversidade física, na fragilidade pessoal. Sonhei com a peça perfeita, imaginava-me uma Antígona ou numa Medeia, sentir o público no meu corpo, entrar na personagem e não me reconhecer, captar o teatro com todos os sentidos. E, agora é com algum arrepio que encarno uma espécie de Maria Antonieta, à espera de misericórdia.

Nesta encenação de agonia é com algum arrepio que peço só mais um papel, só mais uma temporada. Não tinha de ser assim.

Durante alguns anos fui mais afortunada do que é sensato esperar e não concebia que o destino de uma atriz fosse efémero, mas não são as rugas que a humilham ou a derrotam. Sei que fiz o melhor que pude, com a consciência que não se faz teatro à velocidade das novelas sul-americanas. Quando represento quero apenas libertar-me do que sou e, se quisesse alguma coisa, seria apenas esse tão modesto, tão ambicioso objetivo: dar corpo a mulheres marginais, a essas princesas da melancolia. Se me perguntarem

- o que é que quis dizer com esta autobiografia?

a resposta mais sincera é

- o teatro é a minha própria pele e nós atores somos como vírus, precisamos de outras almas para sobreviver. 

E se advertem

- Não há trabalho para todas as atrizes da sua idade

já nem comento, não entendem nada de teatro. 

Agora apareço fora de palco sem pintura, de cara lavada, sem a máscara da atriz. O que é que andam a fazer com os atores e as atrizes que desfalecem à espera de um contrato? Nem um olhar cúmplice a acompanhar-nos, ninguém…

Luís Galego

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Como era simples o alfabeto do corpo e que fácil amá-lo


"[...] O perfume dos lilases, atingido aquele limiar de dor, que não sabemos mais se é física se é mental, apunhalava-a na tarde, naquela casa, outra. Não já a de outrora, onde se mirara no espelho das aparências. Arrogante, segura, vestida apenas da nudez da sua grácil adolescência, sem precisar de asas-braços para cantar a vida. O espelho devolvia-lhe, então, o seu corpo-lira, as suas formas de fruto enxuto, onda e concha, libertas na luz nocturna, que envolvia a sua carne de lua, amassada com azeitona. Um corpo de hastes e ramagens, fonte e braço de água. Margem de seda - longilínea e breve - tão apetecida! Como era simples o alfabeto do corpo e que fácil amá-lo: as formas, a textura, o odor secreto, o sabor salino e canela, o rumor latejante! Os cabelos, movimento na aragem da tarde ou algas de suor, nos ombros da noite. Mas como tocar e sentir, sob a mão, os soluços de sombra e a fragilidade nua e informe do ser? Tão fácil acalmar as sedes do corpo e tão difíceis as outras! O seu fogo estava para além do seu ventre, cavado, capaz de floração, as suas nascentes muito para lá das fissuras, labiais, do corpo. Havia nela sombras mais densas do que as do púbis ou mesmo que as do sol negro dos seus cabelos. Claridades mais luminosas do que a água batida pela luz. O rio das suas pernas era um curso limitado, mas a sua alma tinha caudais de sede, mais ansiedade e inquietação do que as do simples desejo. Coisas sem nome, que apelavam ao caldeamento e à fusão, mais ao êxtase do que ao orgasmo. O que era o amanhecer, lunar, das colinas do seio, comparado às profundidades, nocturnas, do que estava para além dos sentidos: as dormências do que não sabemos pelo olhar e pela metáfora e são tumultuar obscuro? E depois, como decidir, era a sede dela que ele bebia, ou a sua própria sede que acalmava e procurava estancar? O «outro» existe realmente ou somos ainda nós? [...]"

Luísa Dacosta, Na Água do Tempo: Diário


Se eu...-

Se eu tivesse um carro

havia de conhecer

toda a terra.

Se eu tivesse um barco

havia de conhecer

todo o mar.

Se eu tivesse um avião

havia de conhecer

todo o céu.

Tens duas pernas

e ainda não conheces

a gente da tua rua.

Luísa Dacosta

 
Luísa Dacosta, transmontana de nascimento, formou-se em Histórico-Filosóficas. No entanto, já na altura se interessava por literatura, tendo assistido a aulas de Vitorino Nemésio, Lindley Cintra e Crabbé Rocha. Traduziu obras de Nathalie Sarraute e Simone de Beauvoir, mas as suas maiores referências foram as mulheres, que emurchecem aos trinta anos, vivem e morrem na resignação de ter filhos e de os perder, na rotina de um trabalho escravo, sem remuneração, agredidas como animais de carga.
Link:

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Julgamento Precipitado



Se alguém se banha rapidamente, não deverás dizer: «Não se saiu bem.» Melhor será que digas: «Foi rápido de mais.» Se alguém bebe muito vinho, não deverás dizer: «É um erro.» Melhor será que digas: «Bebeu muito vinho.» Antes de teres apurado a razão que levou alguém a proceder daqueles modos, como podes tu saber, em boa verdade, se alguém procedeu bem ou mal? E só deste jeito, ó caro, não correrás o risco de te pronunciar sobre situações falsas tendo-as como situações verdadeiras.
Epicteto, in 'Manual'


It is just as cowardly to judge an absent person as it is wicked to strike a defenseless one. Only the ignorant and narrow-minded gossip, for they speak of persons instead of things.
Lawrence G. Lovasik
 

It is harder to crack a prejudice than an atom.
 Albert Einstein
 

How easy it is to judge rightly after one sees what evil comes from judging wrongly!
 Elizabeth Gaskell
 
Do not judge men by mere appearances; for the light laughter that bubbles on the lip often mantles over the depths of sadness, and the serious look may be the sober veil that covers a divine peace and joy.
 E. H. Chapin
 

I think the hardest thing to overcome is judging yourself and being your own worst critic so to speak.
Nile Rodgers


I look to a day when people will not be judged by the color of their skin, but by the content of their character.”
 Martin Luther King, Jr.
 

Do not judge, and you will never be mistaken.
 Rousseau
 
Judge not, that ye be not judged.
 The Bible
 
It is well, when judging a friend, to remember that he is judging you with the same godlike and superior impartiality.
 Arnold Bennett
 
If you judge people, you have no time to love them.
 Mother Teresa
 

When you judge another, you do not define them, you define yourself.
Wayne Dyer

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Reconciliação dramática entre a doutrina católica e o ardor sexual




HERODÍADES é um dos três Prantos que Giovanni Testor escreveu. A morte de São João Batista e o desejo recalcado de Herodíades, é a obra que os Artistas Unidos divulgam em Lisboa. Trata-se de um ajuste de contas com a tradição de onde vinha, e de que nunca se afastara, o catolicismo. Quer a religião ingénua que a mãe lhe terá transmitido, quer a tumultuosa reflexão que os grandes artistas do barroco (e do barroco lombardo).




Testori, o autor das novelas que deram origem ao Rocco de Visconti, o tradutor de Rimbaud e de São Paulo, foi um dos maiores autores do teatro do século XX, propondo, no final da vida, uma reconciliação dramática entre a doutrina católica e o ardor sexual, o vitupério e a caridade, à procura do lugar “daquele que traz o escândalo”. E, pasmados, escutamos o seu combate com a linguagem, com o corpo, com a nudez da cena, com o espectáculo de feira, com a pobreza. Nas origens e em continuidade de tanta arte que se faz e se fez em Itália, sulfuroso, paradoxal, transpirado, sujo, lírico e ordinário, um teatro obrigatório. [adaptado de Artistas Unidos]



Ver texto A sujidade da palavra publicado no ípsilon AQUI

Giovanni Testori nasceu em 1923, em Novate, nos arrabaldes de Milão, e dizem as wikipédias, «in una família de fervente fede cattolica». E ele também católico, fé sangrando de dúvidas e intransigência, carne, desejo, sexo, tensões e arrependimentos, poeta, cronista, historiador de arte, romancista, dramaturgo, pintor também, foi inventando no teatro, na poesia, uma sua língua espaventosa e reles, esplendorosa, blasfema e ansiosa, língua confessa e dos arrependidos, a tumultuosa, macerada língua daqueles homens sujos, descalços, caídos na terra empoeirada, nus, frementes. (in Assirio e Alvim/blog).

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

A Cada Virtude Corresponde um Vício

 

Habituo-me a só pensar bem dos meus amigos, a confiar-lhe os meus segredos e o meu dinheiro; não tarda que me traiam. Se me revolto contra uma perfídia sou eu, sempre, a sofrer o castigo. Esforço-me por amar os homens em geral; faço-me cego aos seus erros e deixo, indulgente ao máximo, passar infâmias e calúnias: uma bela manhã acordo cúmplice. Se me afasto de uma sociedade que considero má, bem depressa sou atacado pelos demónios da solidão; e procurando amigos melhores, acho os piores. Mesmo depois de vencer as paixões más e chegar, pela abstinência, a uma certa tranquilidade de espírito, sinto uma auto-satisfação que me eleva acima do próximo; e temos à vista o pecado mortal, a vaidade imediatamente castigada. Como explicar que toda a aprendizagem de virtude dê origem a um novo vício?
August Strindberg, in 'Inferno'



Inferno começa com o regresso de Strindberg a Paris, ao seu quarto no Quartier Latin, dias depois de ter abandonado mulher e filha. É então que começa a odisseia pela busca do sentido mais profundo das coisas. Experiências químicas, escritos dispersos, feridas na pele, esquecimento e isolamento do mundo são algumas das provas a que se submete, talvez com algum objectivo catártico. Inferno não é um livro, não é vivido pelo leitor como um livro, mas sim como uma experiência. A afirmação de Pier Paolo Pasolini no posfácio pode dar uma ideia do impacto que esta obra é capaz de provocar, como se, com ela, tivéssemos acesso ao mais íntimo de um autor genial, complexo e contraditório. Misto de diário, ensaio e ficção, o texto é um mergulho nos subterrâneos de seu tumultuado mundo psíquico, no qual a vontade individual parece estar submetida ao poder de forças inconscientes, que transformam o homem num joguete atormentado. É também o testemunho da mania de perseguição de Strindberg, da sua religiosidade supersticiosa, de sua misoginia e misantropia, uma obra de originalidade quase sem paralelo na literatura moderna.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Não tenhas medo do passado





Não tenhas medo do passado. Se as pessoas te disserem que ele é irrevogável, não acredites nelas. O passado, o presente e o futuro não são mais do que um momento na perspectiva de Deus, a perspectiva na qual deveríamos tentar viver. O tempo e o espaço, a sucessão e a extensão, são meras condições acidentais do pensamento. A imaginação pode transcendê-las, e mais, numa esfera livre de existências ideais. Também as coisas são na sua essência aquilo em que decidimos torná-las. Uma coisa é segundo o modo como olhamos para ela.

 Oscar Wilde, in 'De Profundis'

 Oscar Wilde - De Profundis

Clicar em cada uma das “partes”: Part 1; Part 2; Part 3; Part 4; Part 5; Part 6; Part 7

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A Necessidade da Mentira




A imoralidade da mentira não consiste na violação da sacrossanta verdade. Ao fim e ao cabo, tem direito a invocá-la uma sociedade que induz os seus membros compulsivos a falar com franqueza para, logo a seguir, tanto mais seguramente os poder surpreender. À universal verdade não convém permanecer na verdade particular, que imediatamente transforma na sua contrária. Apesar de tudo, à mentira é inerente algo repugnante cuja consciência submete alguém ao açoite do antigo látego, mas que ao mesmo tempo diz algo acerca do carcereiro. O erro reside na excessiva sinceridade. Quem mente envergonha-se, porque em cada mentira deve experimentar o indigno da organização do mundo, que o obriga a mentir, se ele quiser viver, e ainda lhe canta: "Age sempre com lealdade e rectidão".

Tal vergonha rouba a força às mentiras dos mais subtilmente organizados. Elas confundem; por isso, a mentira só no outro se torna imoralidade como tal. Toma este por estúpido e serve de expressão à irresponsabilidade. Entre os insidiosos práticos de hoje, a mentira já há muito perdeu a sua honrosa função de enganar acerca do real. Ninguém acredita em ninguém, todos sabem a resposta. Mente-se só para dar a entender ao outro que a alguém nada nele importa, que dele não se necessita, que lhe é indiferente o que ele pensa acerca de alguém. A mentira, que foi outrora um meio liberal de comunicação, transformou-se hoje numa das técnicas da insolência, graças à qual cada indivíduo estende à sua volta a frieza, e sob cuja protecção pode prosperar.
Theodore Adorno, in "Minima Moralia"

domingo, 8 de janeiro de 2012

a pintura não alimenta, diz o continuo

O novo livro de conversas com Nadir Afonso vai da situação financeira do pintor à única mulher que o compreende. Aos 91 anos, o pintor flaviense continua a trabalhar numa pintura que “procura atingir a exactidão”, qualidade fundamental da obra artística, segundo o autor, a quem não interessam “a perfeição e a originalidade”, elementos que conota com uma ideia de insensibilidade contrária à arte. Pelas mãos de um jornalista, que já tinha publicado “Itinerário (com)sentido” sobre o pintor, “Nadir Afonso conversa com Agostinho Santos” reúne entrevistas realizadas ao longo dos anos. Mais do que procurar “imitar a natureza”, característica dos “insensíveis”, o objectivo é compreender e ir além do perfeito e do original, algo que “os estetas pretendem do artista”.

Aos 18 anos, havia decidido entrar para as Belas Artes. Escreveu o requerimento e dirigiu-se à escola. “Ali estava um funcionário a dormitar, um contínuo. E eu, claro, com os meus 18 anos, timidamente cheguei ao pé dele: ‘Boa tarde. O senhor diz-me onde é a secretaria para me inscrever em pintura?’ Ele puxa o meu requerimento e lê-o. ‘Então o senhor tem o curso dos liceus e vai-se inscrever em pintura? Ó homem, a pintura não alimenta. Curso dos liceus... O senhor vá para arquitectura’”, recordou. “Mudei de orientação nas Belas Artes, mas, no fundo, no fundo do coração, continuei sempre a pintar, fui sempre pintor.”

sábado, 7 de janeiro de 2012

entre a sabedoria e a estupidez


A certa idade, que varia segundo as pessoas mas que se situa por volta dos quarenta, a vida começa a parecer-nos insípida, lenta, estéril, sem atractivos, repetitiva, como se cada dia não fosse senão o plágio do anterior. Algo em nós se apaga: entusiasmo, energia, capacidade de fazer planos, espírito de aventura ou simplesmente apetite de prazer, de invenção ou de risco. É o momento de fazer uma paragem, reconsiderar a vida sob todos os seus aspectos e tentar tirar partido das suas fraquezas. Momento de suprema eleição, pois trata-se, na realidade, de escolher entre a sabedoria e a estupidez.

Julio Ramón Ribeyro, in Prosas Apátridas